domingo, 5 de abril de 2020

Café


O passado está presente a todo instante. Ele se esconde para que possamos respirar o dia e se intromete no momento que quiser. Ele chega sem avisos, afinal sempre esteve ali. Vem sorrateiro se fazendo presente durante um sonho, uma escrita, em uma pintura, música, no café ou na louça. De alguma forma todas estas coisas se transformam em teletransportes que deixam suspender um tempo-espaço distinto do de agora.
Ao longo dos anos o preparo do café se tornou um momento de poesia e introspecção. Isto começou quando o café me segredou que eu precisava romper um elo.
Eu nunca imaginei que poderia escapar de lá. Por que eu queria escapar? A vida que eu escolhi e criei foi solidificada pelo tempo. Não havia jeito fácil de sair, na verdade não havia possibilidade alguma. Não havia chão que pudesse sustentar este baque. Na rotina em que estava imersa fui fazer o café com as minhas alegrias e meus pesares.
Colocava o pó no filtro de papel quando ouvi um sussurro.
- A medida está errada.
- Que medida? – respondi.
- A quantidade de café.
Surpresa e assustada, refleti sobre o que ouvia enquanto derramava a água fervida. Aproveitando a minha pausa, a voz continuou:
- Você não quer mais fazer café para dois.
Eu demorei muito tempo para entender a mensagem que tinha chegado até mim naquele momento. Só anos depois enquanto fazia café percebi que a minha mão tinha se desacostumado com o passado. E agora eu fazia café só para um.
Mesmo sem a rigidez da obrigação de horário, eu acordei antes do despertador. O momento em que vivemos providenciou certa flexibilidade e um pouco de calmaria para mim. A incerteza beira mais do que nunca, mas ao mesmo tempo há um tom de descanso. Por mais que ninguém saiba que música é essa que estamos escutando.
A minha mão, modificada, fez o café – agora na cafeteira elétrica. A nova quantidade que se encaixa perfeitamente e mesmo quando não, se ajusta de maneira simples e sincera. Agora estou um passo mais perto de saber quem eu sou.


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