O passado está presente a todo
instante. Ele se esconde para que possamos respirar o dia e se intromete no
momento que quiser. Ele chega sem avisos, afinal sempre esteve ali. Vem
sorrateiro se fazendo presente durante um sonho, uma escrita, em uma pintura,
música, no café ou na louça. De alguma forma todas estas coisas se transformam
em teletransportes que deixam suspender um tempo-espaço distinto do de agora.
Ao longo dos anos o preparo do
café se tornou um momento de poesia e introspecção. Isto começou quando o café
me segredou que eu precisava romper um elo.
Eu nunca imaginei que poderia
escapar de lá. Por que eu queria escapar? A vida que eu escolhi e criei foi
solidificada pelo tempo. Não havia jeito fácil de sair, na verdade não havia
possibilidade alguma. Não havia chão que pudesse sustentar este baque. Na
rotina em que estava imersa fui fazer o café com as minhas alegrias e meus
pesares.
Colocava o pó no filtro de papel
quando ouvi um sussurro.
- A medida está errada.
- Que medida? – respondi.
- A quantidade de café.
Surpresa e assustada, refleti
sobre o que ouvia enquanto derramava a água fervida. Aproveitando a minha
pausa, a voz continuou:
- Você não quer mais fazer café
para dois.
Eu demorei muito tempo para
entender a mensagem que tinha chegado até mim naquele momento. Só anos depois
enquanto fazia café percebi que a minha mão tinha se desacostumado com o
passado. E agora eu fazia café só para um.
Mesmo sem a rigidez da obrigação
de horário, eu acordei antes do despertador. O momento em que vivemos
providenciou certa flexibilidade e um pouco de calmaria para mim. A incerteza
beira mais do que nunca, mas ao mesmo tempo há um tom de descanso. Por mais que
ninguém saiba que música é essa que estamos escutando.
A minha mão, modificada, fez o
café – agora na cafeteira elétrica. A nova quantidade que se encaixa
perfeitamente e mesmo quando não, se ajusta de maneira simples e sincera. Agora
estou um passo mais perto de saber quem eu sou.