sábado, 11 de janeiro de 2020

Aula De Subjuntivo

“Isso é só um momento de uma vida muito grande que você tem pela frente.”

               Toda vez que a vida se torna insuportável ou eu me sinto perdida o suficiente a ponto de perder as esperanças eu tento repetir esse mantra para mim. Essa foi uma frase que me disseram em um momento no qual pedi amparo. Ela é óbvia, simples e eu sei o que significa. Mas não me traz conforto algum. Que diferença pode fazer no meu presente saber que em um futuro tudo será melhor? Que garantia cega é essa que nós nos prometemos e repetimos toda vez? O futuro é incerto. E você sabe disso.
               Quando o despertador soou eu não quis acordar. Não sei se era porque não queria trabalhar ou porque o mundo exterior me assustava. Provavelmente os dois. Nesses poucos minutos antes de forçar meu corpo a levantar eu me perguntei porque estava indo para onde estava indo. A resposta é sempre imediata: dinheiro. A voz do meu pai me vem na cabeça a todo instante que penso em sair deste emprego. Não posso sem que me haja outra proposta. Porra de mundo capitalista.
              Levantei e me sentei por um tempo na cama. Contava o tempo que eu tinha para terminar meus afazeres e chegar a tempo. Banheiro, cozinha, café da manhã, o primeiro cigarro do dia – que prefere ser fumado na calmaria, organizar a bolsa, a comida, alimentar a gata e sair. Às vezes eu demoro mais tempo sentada organizando meu cronograma na minha cabeça do que de fato cumprindo-o.
              Quando percebo já estou dentro do metrô. Todo dia uma leve multidão. Eu odeio estar trancada em espaços públicos cheios. Eu não tenho claustrofobia, mas toda vez que o metrô para no meio dos túneis eu preciso usar toda minha energia mental para me impedir de surtar. Começo a ler as pessoas ao meu redor para entender que elas se tornarão minhas íntimas caso aquela merda não ande. As janelas só mostram escuridão e estamos salvos por conta da energia. E se a energia acaba? Começo a sentir a respiração se esvaindo enquanto falo para mim mesma que isso acabará logo. O metrô recomeça a andar e minha respiração volta. Não me leva mais de 7 minutos para chegar ao bendito emprego. 
              O engraçado é que às vezes faço o caminho sem perceber, mas na maioria das vezes eu sinto que levo horas. Passa tanto tempo que nem faz mais sentido eu tentar chegar pontual, já estou dias atrasada. São tantos passos para chegar até a próxima esquina que parece que cruzei bairros inteiros. Mas aí eu chego na praia. A brisa sempre me traz alívio. A maresia também. A água batendo no meu pé, principalmente. Mas não posso desfrutar desta paz. 
              Quando eu chego tenho que subir, cumprimentar todos os meus colegas e chefe e começar os preparativos para aula. Até a portaria eu ainda sou eu. Sinto meus sentimentos, ouço meus pensamentos, contenho o choro que por vezes vem. Por que sempre no caminho para o trabalho? Enquanto empurro o portão de entrada, retiro um dos fones e coloco a minha máscara. “Bom dia”. Muitas vezes não sou respondida. O engraçado é que um dia ouvi um dos porteiros reclamar que “aqueles professores dessa escola são muito mal educados, só querem ganhar dinheiro, nem dão bom dia.” Confesso que depois disso eu passei a cumprimentar diariamente, mas não é sempre que recebo a mesma cortesia de volta. A máscara vai se assentando durante a subida. O percorrer de uma escada é sempre um momento de transição. Eu saio da minha liberdade e me prendo às regras. Dou uma última ajeitada antes de girar a maçaneta.
               Exatamente às 09:00 o circo começa. Por cima da máscara que já está em meu rosto eu pinto um palhaço. Deixo meu lado divertido fluir sem limites enquanto tento ensinar o que uma metodologia diz que eu tenho que ensinar. Leve em consideração que além de ensinar eu preciso ser carismática, engraçada e fazer com que os alunos gostem de mim. Não que eu não me importe se as pessoas não gostam de mim, mas eu nunca fiz tanta questão de agradar a todos. Mas isto é uma regra do trabalho. Depois das horas falando, ouvindo, fingindo interesse, sentindo interesse, ensinando e aprendendo eu paro para almoçar. Odeio comer sozinha, então acabo preferindo me juntar a algum colega e fixar ainda mais a máscara. Às vezes eu deixo ela cair por um momento e sou mais sincera, mas às vezes eu também acho que isso já faz parte da personagem. Mais horas passam e meu cérebro é sugado por histórias que eu não queria ouvir e histórias que eu até queria ouvir, mas acabo não guardando na memória. “De onde você é mesmo?” Enquanto eu explico o presente do subjuntivo eu me lembro das crises de ansiedade que eu tive durante os primeiros meses. Como demorei estudando esse conteúdo achando que eu não entendia direito e não saberia explicar. De fato eu não entendia e não sabia. Penso em como é mais fácil agora que pelo menos eu entendo. Penso também nas exigências do meu chefe e como o ambiente de trabalho é tóxico e abusivo. Será que realmente existem ambientes que não sejam assim? Lembro da nota. Da minha nota de avaliação baixa que é o grande trunfo na mão dele e o dá permissão para me ameaçar e me cobrar ainda mais. Eu cansei de ser um brinquedo.
               Seria ótimo se durante aquelas duas horas eu estivesse pensando apenas no presente do subjuntivo, né? Acontece de os alunos devolverem as perguntas que eu faço. “O que você fará ano que vem?” (Para trabalhar futuro do indicativo, por exemplo). Embarco na jornada deles e em suas respostas sempre tão positivas. Quando eles percebem que eu sou um ser humano e por algum motivo tem interesse em mim e me revidam a pergunta, eu fico perdida. Eu não sei, eu não sei... Eu digo que não sei. Estou aprendendo a dar exemplos falsos. Porque eu não poderia responder “sair dessa merda”, “sair desse país violento”, “procurar um emprego que me valorize e me faça sentir bem e não ter crises de ansiedade que eu nunca tinha tido antes...” Acabou. Já posso voltar para casa.
               O metrô é muito mais insuportável agora. Eu entro aos empurrões e tento me espremer perto da barra imaginando que se eu me encolher com força o suficiente ninguém mais poderá me enxergar. Aguento e agradeço o privilégio de serem poucos minutos, talvez esta seja a melhor coisa desse emprego. Chego sempre esgotada. Sem energia, sem vontade. Eu só quero descansar e comer qualquer coisa.
               Os dias se repetem assim. Há eventuais surpresas. Há momentos incríveis. Há o que valha a pena. Só não é sempre. A dor de cabeça é quase tão constante quanto o desconforto estomacal e mesmo com essa festa dentro de mim me sinto só e vazia. A frase volta, a esperança falsa e hipócrita de que amanhã vai ser melhor. Amanhã pode ser melhor. Tudo parece tão constante e instável ao mesmo tempo. Eu me pergunto se o resto do mundo tem os mesmos questionamentos subjetivos que eu. Acho que a minha percepção da realidade pode ser alterada.
               Percebo que estou sem cigarros e sou obrigada a descer para comprar. Esta é a única obrigação que eu tenho comigo mesma: alimentar meu vício. Ele não pode morrer enquanto eu estiver viva e ainda o quiser. Porque eu quero tanto ele que preciso. Eu fumo para pensar em coisas difíceis, eu fumo para esperar, para atravessar a rua, para piorar meu enjoo esperando que ele passe...
               Enquanto separo meu dinheiro escuto um pai e um filho conversando. Eles estão decidindo o que comprar na banca. O pai comprou cigarro e o filho quer guloseimas. O filho escolhe seus doces e diz que quer mais um chocolate. O pai responde que na volta eles pegam mais um. A criança aceita a decisão, mas pede uma garantia “quando o sol se pôr?” ele pergunta. E com certeza o pai responde “quando o sol se pôr.” Eu achei isso de uma poesia tremenda. Que coisa mais linda e cotidiana. Qual seria o simbolismo do pôr do sol para eles dois? Relaciono com a esperança. É sempre um alívio saber que o sol vai se pôr mais uma vez tal como saber que novamente ele se levantará.
                Eu sinto falta de ver o sol se pondo. Eu sinto falta da calmaria de sentir esse momento. Das águas geladas de uma cachoeira congelando meu pé e da tranquilidade de acordar numa praia deserta. É como se eu nunca mais pudesse fazer essas coisas. Atravesso a rua desatenta enquanto guardo o maço dentro da bolsa. Eu escuto um barulho muito alto. Sinto o impacto. Agora não há mais nada. Parece que não verei mais o sol se pôr.

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