domingo, 24 de dezembro de 2023

A blusa do meu avô

A blusa do meu avô foi uma das peças de roupa mais acolhedoras que eu já tive na vida.
Não sei bem o por quê, mas ela me dava o abraço que ninguém mais me dava. Inclusive quando eu mesma queria me abraçar, mas não conseguia.
Vejo como ela já começa a se desfazer pelo uso. E como foi usada... 
Olho pra ela no armário ao lado de uma outra blusa esquecida por alguém.
Preta e branca, cores mais fortes.
A antiga em tons mais escuros e calmos.
A nova também me traz algum conforto...
Vejo como elas se encaram entendendo a sutileza do momento:
o antigo ia embora
dando lugar ao novo. 
Mas quando eu já estava satisfeita,
entendendo com elas também, a troca que estava sendo feita, percebi que não havia bolso algum na blusa nova.
Como se não permitisse que eu guardasse nada. 
Como se minhas marcas do passado não pudesem ser levadas comigo.
Mas não há caminho sem perceber
que não sou eu que carrego minhas cicatrizes, 
são as minhas cicatrizes que me carregam. 

terça-feira, 25 de abril de 2023

Alerta de Risco

saí de casa um pouco tonta segui tonta em direção à praia  tonta sentei na areia não sei se é cansaço, falta de vitamina ou qualquer outra coisa ALERTA DE RISCO como escolher quais riscos correr? o prédio que tanto ajudou a me localizar, hoje me impede de caminhar ando de cabeça baixa e com a vista perdida porque tenho medo de ver os óculos protegem a vista e a música os ouvidos eu nem vi o navio passar - em um momento estava aqui e logo já tinha desaparecido. eu perdi de vista eu também te perdi de vista e tenho tanto medo de te encontrar quanto quero que você me veja pelas ruas. cada vez que o telefone não toca é um alívio carregador com uma pitada de dor o navio sumiu por trás das montanhas e você sumiu por trás da vida por trás de cada esquina onde nos encontrávamos… e mesmo assim nunca deixou de estar presente em mim como uma ferida que não sara… já coloquei remédio protegi expus fiz tudo que podia para te curar só quero que passe e vire cicatriz

        porque cicatriz 

é marca

quando a dor

deixa de 

latejar.


quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Controle

A angústia quer subir, mas não sobe
a ansiedade quer apertar, mas não aperta
o estômago acha que tem que embrulhar, mas não embrulha
você disse que não tem disposição
transformando sua confusão em mil palavras perdidas inventando uma equação que só você sabe resolver
mascarando isso com precisar me proteger
precisar se responsabilizar 
precisar cuidar
enquanto na verdade você só estava respeitando os limites que eu coloquei
se você não tem disposição para um tipo de conversa sequer
você não tem disposição pra mim.
e eu estou aprendendo cada vez mais que não posso me colocar em lugares que não caibo.
ou sobra ou falta
ou sobra ou falta
ou falta ou sobra
se dispor é estar presente de corpo e alma, a querer
querer a cada instante
de maneira natural e leve
você não está disposto a me ter, mas está disposto a me perder
se você não está disposto, você não me quer
e eu não vou mais ficar onde não sou querida
nossos limites se atravessaram algumas vezes
e eu deixei os seus ultrapassarem os meus
os meus são muito extensos e se alongam demais, eu sei
mas eu deixei os seus irem comandando.
porque no final das contas é sobre isso: controle
sobre quem está na frente e quem está atrás
alguém sempre se beneficia mais
o tempo todo você disse que quem iria controlar era eu
e eu acreditei até agora
mas você criou uma história e inventou uma ilusão enquanto jogava o jogo exatamente do jeito que queria
e eu sempre estive ali
coloquei algumas regras novas
mas ainda sim a disposição das peças era toda sua.
até aqui eu sempre estive sem controle
não tive controle com o sentimento intenso que me arrebatou
que jogou tudo pelos ares e me fez viver num quase sonho
eu também não queria ele mas, não pude controlar
não tive controle quando você me cobrava e eu achava direitinho que estava tudo bem e
que você podia ocupar esse lugar
porque na verdade você podia ocupar todos
podia ter o que quisesse.
controle.
eu estava sempre disponível, sempre estive a sua mercê
e o controle
era todo seu.
agora me vejo repensando em tudo
e não sei quanto tempo vai durar
por isso escrevo
para que dure.
sinto o sabor da mudança, a felicidade do caminho e a calmaria do procresso
as máscaras caem
a fantasia se esvai
a perfeição desaparece
e agora eu te digo
o controle é todo meu.

sábado, 26 de dezembro de 2020

 “Você voltou para nós. Estamos tão felizes. Você cresceu tanto, amadureceu. O orgulho transborda. Você voltou.”

Sei que voltei. E estou feliz por estar de volta. Minha família parece mais completa, as relações estão mais saudáveis, estáveis e maduras. Tenho uma casa agora. Um lugar que considero meu lar. Depois de tanto tempo pulando por lares alheios, sem ter um canto para construir. Agora tenho uma casa com as minhas cores, meus jeitos e minhas nuvens. Tenho um trabalho que fica lindo no meu currículo, que as pessoas adoram ouvir sobre porque é tão interessante. Parece que me tornei alguém digna de orgulho e interesse. Tenho amigos presentes que se importam e cuidam de mim, que estão comigo quando eu mais preciso para que eu não me sinta sozinha. 

Mas não há nada. Dentro não há nada. Não sinto mais os desejos ardentes que antes sentia. Não sinto paixão. Por nada. Parece que os dias seguem passando sendo intercalados com momentos bons. Mas nada fica. Tudo me parece tão passageiro. Não há um mesmo pensamento que rodeie minha mente. Que me faça acordar com sorriso no rosto. Não há nada que faça eu me sentir completa por dentro. 

Tudo me parece normal. Medíocre. Vazio. Meus olhos me comovem. Evito encará-los porque eles me contam um segredo que ninguém vê. Você não é feliz. 

Pelo menos não tenho mais o desespero das noites em claro e de me sentir presa a uma vida que não me pertencia. Agora continuo presa, mas numa vida que me pertence. Atormentada pelo passado que segue me assombrando sem eu entender o por quê. Porque parece que eu nunca mais serei feliz? 

Não vejo graça nas coisas mundanas, nas coisas cotidianas. Consigo perceber o valor dos pequenos momentos, sempre me apaguei mais a eles. Porém eles não me bastam agora. Agora eu precisava voar até as estrelas, ver um prédio queimar, uma explosão. Eu não nasci para uma vida sem aventuras. 

Eu só tenho sentido pesar. Culpa por uma vida que eu deixei para trás. Tristeza por não ser quem eu queria ser. Solidão por não me amar mais. O amor pela vida se foi.

Não me entenda errado, eu não sou suicida. Mas constantemente quando atravesso a rua imagino um carro se chocando contra o meu corpo e levando todo esse desconforto embora.

Me sinto exausta, fraca, sem vontade. 

A última vez que me senti preenchida foi quando abri mão de um castelo que construí por 5 anos. Quando do alto da torre eu vi a tempestade chegando e não tive medo. Agora tenho medo novamente e não me sinto com o mesmo poder de antes. 

Me sinto desconectada. Um quebra-cabeça montado pela metade cujas peças estão perdidas. Eu não sinto orgulho de mim por mais que eu saiba que deva sentir. 

Eu não sei o que fazer para ser feliz. Para me sentir melhor. Às vezes a solidão nem me importa mais, às vezes ela arde tanto que meu peito queima. Eu não sei o que mudar. Eu não sei o que eu quero. 

As lágrimas são poucas. Me sinto insensível. Mais madura, sim. Mas isso não me traz conforto. Perdi parte da minha ingenuidade e inocência infantil que eu tanto amava. Já não me envolvo mais como antes. 

Eu finjo mais do que sou.


Deixe o vento entrar

 É bem difícil te decifrar... Eu não entendo o que você quer de mim.

Uma vez me perguntaram isso, e me foi quase impossível responder “O que você quer de mim, Geovana?” Eu tremi por dentro, minha garganta fechou, não consegui dizer, mas eu sabia muito bem o que eu queria.

E você? O que você quer? Isto é apenas uma amizade ou poderia ser algo mais? Eu não compreendo os teus sinais. Tampouco sei se são sinais ou não. Se estiver indecisa, prefiro saber. Pelo menos terei algo com o que lidar. A inconstância e a dúvida que ficam no ar não nos caem bem. É sempre preferível ter um sim ou um não. 

Se você me conhecesse, me chamaria para tomar chuva agora. Se gostasse de mim saberia que eu te quero, na rua, enquanto as gotas me fazem sentir frio. Nossa distância é tão pequena que antes mesmo de sair eu já cheguei. Mas eu não sei se as portas pelas quais quero entrar estarão abertas. Não sei até onde você me permitirá ir. Se poderei chegar mais perto de te compreender e entrar em contato com seus anseios e amores.

Eu só gostaria de saber como seria. Para tirar essas suposições da minha cabeça. Para entender, principalmente, se o que vejo é real ou se está só dentro de meus olhos. 

Você diz que gosta da chuva de dentro de casa, eu gosto dela em contato com a minha pele.  Eu gosto de sentir as gotas fazendo meu corpo arrepiar. Você fecha todas as janelas que eu abro. Como eu posso sentir o vento assim?

E se você me conhecesse, saberia que o que mais me importa é sentir o vento.


domingo, 31 de maio de 2020

Um Domingo quase bom


Era um bom Domingo.
Parecia um bom Domingo. 
Um último dia de férias com sensação de sucesso. As duas últimas semanas me trouxeram um sentido de realização, de auto cuidado, de carinho. Mas eu sabia que não ia terminar assim.
O cair da noite veio devagar, tentando fazer-se imperceptível. Mas eu percebi, você sabia que eu perceberia. A noite não me engana porque eu sei o que ela traz. 
A minha sombra sentada tentando expulsar a sensação de desastre. Como se houvesse algo para acontecer. Mas o que, o que, o que?
O sol foi se pondo e eu fui me distraindo para não vê-lo partir. 
Até que não houve mais como fugir. Meu quarto escurecera por completo. 
Tornou-se necessário acender uma luz. Ainda há o que fazer, ainda não é possível dormir e repousar.
Eu não te vi chegar. 
Começou com um peso na respiração e um leve enjoo na boca do estômago. Mais um cigarro. Será que a fumaça te leva pra longe? Não levou.

E assim, sem mais nem menos... o que começa como sucesso termina como desastre.

E eu que amanheci tão grande, anoiteço pequena.



sexta-feira, 8 de maio de 2020

As histórias das atravessias que nunca fazemos,
não serão mais escritas. 
Não há caneta
nem teclado
nem boca
nem mão
que possa contá-las.
Elas morreram no dia em que nos dissemos adeus.


A sensação de encontrar um passado é extremamente perturbadora.
Às vezes há um conforto, às vezes desconforto. 
Às vezes há alegria, às vezes tristeza.
Às vezes alívio, às vezes peso.


Eu tive que mudar todo meu vocabulário
tive que mudar o jeito que meu olhar encarava as coisas
tive que mudar alguns desenhos algumas palavras que ficaram grudadas na cabeça 
tive que mudar as músicas e todos os significados
tive que ramificar os últimos cinco anos da minha vida
e pedaço por pedaço ressignificar tudo que aconteceu
tudo que eu vivi. 
Tive que mudar meu travesseiro de lado
as roupas joguei fora
os moveis não queria, mas alguns tive que levar
mesmo os que você tocou
eu não aguento mais esse espaço que era nosso
e o pior é saber
que o espaço que você ocupou dentro de mim, nunca estará vazio
uma parte da minha vida
uma parte da minha história
será sempre sua. 


Eu já não lembro mais como era dormir nessa cama com você
às vezes até duvido de que lado eu dormia e de que lado você acordava.

Hoje a cama é só minha
e eu também.

domingo, 5 de abril de 2020

Café


O passado está presente a todo instante. Ele se esconde para que possamos respirar o dia e se intromete no momento que quiser. Ele chega sem avisos, afinal sempre esteve ali. Vem sorrateiro se fazendo presente durante um sonho, uma escrita, em uma pintura, música, no café ou na louça. De alguma forma todas estas coisas se transformam em teletransportes que deixam suspender um tempo-espaço distinto do de agora.
Ao longo dos anos o preparo do café se tornou um momento de poesia e introspecção. Isto começou quando o café me segredou que eu precisava romper um elo.
Eu nunca imaginei que poderia escapar de lá. Por que eu queria escapar? A vida que eu escolhi e criei foi solidificada pelo tempo. Não havia jeito fácil de sair, na verdade não havia possibilidade alguma. Não havia chão que pudesse sustentar este baque. Na rotina em que estava imersa fui fazer o café com as minhas alegrias e meus pesares.
Colocava o pó no filtro de papel quando ouvi um sussurro.
- A medida está errada.
- Que medida? – respondi.
- A quantidade de café.
Surpresa e assustada, refleti sobre o que ouvia enquanto derramava a água fervida. Aproveitando a minha pausa, a voz continuou:
- Você não quer mais fazer café para dois.
Eu demorei muito tempo para entender a mensagem que tinha chegado até mim naquele momento. Só anos depois enquanto fazia café percebi que a minha mão tinha se desacostumado com o passado. E agora eu fazia café só para um.
Mesmo sem a rigidez da obrigação de horário, eu acordei antes do despertador. O momento em que vivemos providenciou certa flexibilidade e um pouco de calmaria para mim. A incerteza beira mais do que nunca, mas ao mesmo tempo há um tom de descanso. Por mais que ninguém saiba que música é essa que estamos escutando.
A minha mão, modificada, fez o café – agora na cafeteira elétrica. A nova quantidade que se encaixa perfeitamente e mesmo quando não, se ajusta de maneira simples e sincera. Agora estou um passo mais perto de saber quem eu sou.


sábado, 11 de janeiro de 2020

?



Eu voltei aqui.

Buscando nas migalhas

Procurando nos retalhos

O que possa haver de mim.

Descobrindo as perguntas que tenho que fazer

Conhecendo respostas que não conhecia.



Mas dentro de cada estrela

Que eu não vejo cair no céu (só imagino)

Tem um pedaço

De nós.



Pelo menos

A minha vida

É minha

Agora.

Apatia


Há quanto tempo estou assim?
Desconectada e distante.
Procurando o caminho de volta para o meu próprio corpo.
Eu vejo os dias passarem sem sentir. Do mesmo tempo que às vezes eles se arrastam.
Não sei mais onde estão minhas emoções.
Me comovo com uma brisa repentina e não me comovo com nada.
Me sinto sozinha e me fecho cada vez mais.
Não quero ver nada além da tela da minha televisão.
Eu não sei o que eu quero. Para onde quero ir. Tampouco como quero caminhar.
Um pé depois do outro. É assim?
Eu boto um pé e não sinto chão sólido.
Afundo.
Minhas palavras não me firmam mais.
Minhas seguranças desapareceram.
Há anos tentando sentir. O que eu senti minha vida inteira.
E agora desapareceu.
Tudo desapareceu.



Aula De Subjuntivo

“Isso é só um momento de uma vida muito grande que você tem pela frente.”

               Toda vez que a vida se torna insuportável ou eu me sinto perdida o suficiente a ponto de perder as esperanças eu tento repetir esse mantra para mim. Essa foi uma frase que me disseram em um momento no qual pedi amparo. Ela é óbvia, simples e eu sei o que significa. Mas não me traz conforto algum. Que diferença pode fazer no meu presente saber que em um futuro tudo será melhor? Que garantia cega é essa que nós nos prometemos e repetimos toda vez? O futuro é incerto. E você sabe disso.
               Quando o despertador soou eu não quis acordar. Não sei se era porque não queria trabalhar ou porque o mundo exterior me assustava. Provavelmente os dois. Nesses poucos minutos antes de forçar meu corpo a levantar eu me perguntei porque estava indo para onde estava indo. A resposta é sempre imediata: dinheiro. A voz do meu pai me vem na cabeça a todo instante que penso em sair deste emprego. Não posso sem que me haja outra proposta. Porra de mundo capitalista.
              Levantei e me sentei por um tempo na cama. Contava o tempo que eu tinha para terminar meus afazeres e chegar a tempo. Banheiro, cozinha, café da manhã, o primeiro cigarro do dia – que prefere ser fumado na calmaria, organizar a bolsa, a comida, alimentar a gata e sair. Às vezes eu demoro mais tempo sentada organizando meu cronograma na minha cabeça do que de fato cumprindo-o.
              Quando percebo já estou dentro do metrô. Todo dia uma leve multidão. Eu odeio estar trancada em espaços públicos cheios. Eu não tenho claustrofobia, mas toda vez que o metrô para no meio dos túneis eu preciso usar toda minha energia mental para me impedir de surtar. Começo a ler as pessoas ao meu redor para entender que elas se tornarão minhas íntimas caso aquela merda não ande. As janelas só mostram escuridão e estamos salvos por conta da energia. E se a energia acaba? Começo a sentir a respiração se esvaindo enquanto falo para mim mesma que isso acabará logo. O metrô recomeça a andar e minha respiração volta. Não me leva mais de 7 minutos para chegar ao bendito emprego. 
              O engraçado é que às vezes faço o caminho sem perceber, mas na maioria das vezes eu sinto que levo horas. Passa tanto tempo que nem faz mais sentido eu tentar chegar pontual, já estou dias atrasada. São tantos passos para chegar até a próxima esquina que parece que cruzei bairros inteiros. Mas aí eu chego na praia. A brisa sempre me traz alívio. A maresia também. A água batendo no meu pé, principalmente. Mas não posso desfrutar desta paz. 
              Quando eu chego tenho que subir, cumprimentar todos os meus colegas e chefe e começar os preparativos para aula. Até a portaria eu ainda sou eu. Sinto meus sentimentos, ouço meus pensamentos, contenho o choro que por vezes vem. Por que sempre no caminho para o trabalho? Enquanto empurro o portão de entrada, retiro um dos fones e coloco a minha máscara. “Bom dia”. Muitas vezes não sou respondida. O engraçado é que um dia ouvi um dos porteiros reclamar que “aqueles professores dessa escola são muito mal educados, só querem ganhar dinheiro, nem dão bom dia.” Confesso que depois disso eu passei a cumprimentar diariamente, mas não é sempre que recebo a mesma cortesia de volta. A máscara vai se assentando durante a subida. O percorrer de uma escada é sempre um momento de transição. Eu saio da minha liberdade e me prendo às regras. Dou uma última ajeitada antes de girar a maçaneta.
               Exatamente às 09:00 o circo começa. Por cima da máscara que já está em meu rosto eu pinto um palhaço. Deixo meu lado divertido fluir sem limites enquanto tento ensinar o que uma metodologia diz que eu tenho que ensinar. Leve em consideração que além de ensinar eu preciso ser carismática, engraçada e fazer com que os alunos gostem de mim. Não que eu não me importe se as pessoas não gostam de mim, mas eu nunca fiz tanta questão de agradar a todos. Mas isto é uma regra do trabalho. Depois das horas falando, ouvindo, fingindo interesse, sentindo interesse, ensinando e aprendendo eu paro para almoçar. Odeio comer sozinha, então acabo preferindo me juntar a algum colega e fixar ainda mais a máscara. Às vezes eu deixo ela cair por um momento e sou mais sincera, mas às vezes eu também acho que isso já faz parte da personagem. Mais horas passam e meu cérebro é sugado por histórias que eu não queria ouvir e histórias que eu até queria ouvir, mas acabo não guardando na memória. “De onde você é mesmo?” Enquanto eu explico o presente do subjuntivo eu me lembro das crises de ansiedade que eu tive durante os primeiros meses. Como demorei estudando esse conteúdo achando que eu não entendia direito e não saberia explicar. De fato eu não entendia e não sabia. Penso em como é mais fácil agora que pelo menos eu entendo. Penso também nas exigências do meu chefe e como o ambiente de trabalho é tóxico e abusivo. Será que realmente existem ambientes que não sejam assim? Lembro da nota. Da minha nota de avaliação baixa que é o grande trunfo na mão dele e o dá permissão para me ameaçar e me cobrar ainda mais. Eu cansei de ser um brinquedo.
               Seria ótimo se durante aquelas duas horas eu estivesse pensando apenas no presente do subjuntivo, né? Acontece de os alunos devolverem as perguntas que eu faço. “O que você fará ano que vem?” (Para trabalhar futuro do indicativo, por exemplo). Embarco na jornada deles e em suas respostas sempre tão positivas. Quando eles percebem que eu sou um ser humano e por algum motivo tem interesse em mim e me revidam a pergunta, eu fico perdida. Eu não sei, eu não sei... Eu digo que não sei. Estou aprendendo a dar exemplos falsos. Porque eu não poderia responder “sair dessa merda”, “sair desse país violento”, “procurar um emprego que me valorize e me faça sentir bem e não ter crises de ansiedade que eu nunca tinha tido antes...” Acabou. Já posso voltar para casa.
               O metrô é muito mais insuportável agora. Eu entro aos empurrões e tento me espremer perto da barra imaginando que se eu me encolher com força o suficiente ninguém mais poderá me enxergar. Aguento e agradeço o privilégio de serem poucos minutos, talvez esta seja a melhor coisa desse emprego. Chego sempre esgotada. Sem energia, sem vontade. Eu só quero descansar e comer qualquer coisa.
               Os dias se repetem assim. Há eventuais surpresas. Há momentos incríveis. Há o que valha a pena. Só não é sempre. A dor de cabeça é quase tão constante quanto o desconforto estomacal e mesmo com essa festa dentro de mim me sinto só e vazia. A frase volta, a esperança falsa e hipócrita de que amanhã vai ser melhor. Amanhã pode ser melhor. Tudo parece tão constante e instável ao mesmo tempo. Eu me pergunto se o resto do mundo tem os mesmos questionamentos subjetivos que eu. Acho que a minha percepção da realidade pode ser alterada.
               Percebo que estou sem cigarros e sou obrigada a descer para comprar. Esta é a única obrigação que eu tenho comigo mesma: alimentar meu vício. Ele não pode morrer enquanto eu estiver viva e ainda o quiser. Porque eu quero tanto ele que preciso. Eu fumo para pensar em coisas difíceis, eu fumo para esperar, para atravessar a rua, para piorar meu enjoo esperando que ele passe...
               Enquanto separo meu dinheiro escuto um pai e um filho conversando. Eles estão decidindo o que comprar na banca. O pai comprou cigarro e o filho quer guloseimas. O filho escolhe seus doces e diz que quer mais um chocolate. O pai responde que na volta eles pegam mais um. A criança aceita a decisão, mas pede uma garantia “quando o sol se pôr?” ele pergunta. E com certeza o pai responde “quando o sol se pôr.” Eu achei isso de uma poesia tremenda. Que coisa mais linda e cotidiana. Qual seria o simbolismo do pôr do sol para eles dois? Relaciono com a esperança. É sempre um alívio saber que o sol vai se pôr mais uma vez tal como saber que novamente ele se levantará.
                Eu sinto falta de ver o sol se pondo. Eu sinto falta da calmaria de sentir esse momento. Das águas geladas de uma cachoeira congelando meu pé e da tranquilidade de acordar numa praia deserta. É como se eu nunca mais pudesse fazer essas coisas. Atravesso a rua desatenta enquanto guardo o maço dentro da bolsa. Eu escuto um barulho muito alto. Sinto o impacto. Agora não há mais nada. Parece que não verei mais o sol se pôr.

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sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Caminho para Santiago


A arte de perder, de fato não é tão difícil de dominar.

Vá até o seu armário, sua arara, sua mala, sua sacola. O lugar qualquer que seja aquele que você guarde suas roupas.

Encare todas as histórias que elas te contam. Escute uma por uma. Relembre com dor e com pesar. Relembre com alegria e alívio.

É importante sentir todos estes sentimentos para que o processo de perda se complete.

Depois de escutar tudo o que as roupas te falam, perceba com quais histórias você não se conecta mais.

Quais história já estão na sua cabeça, aquelas que você não precisa mais de um lembrete. Aquelas que já não cabem mais em você.

Coloque elas uma ante a outra. De preferência em um lugar grande como uma cama ou o chão.

Deixe que elas conversem entre si. Que troquem palavras e que desvendem umas as outras.

Estes processos podem demorar mais que alguns poucos minutos.

Quando não houver mais nada para ser dito, mais nada para ser escutado, separe aquelas que já não se encaixam mais em você.

Guarde-as com o carinho de como quem diz até logo. Deixe-as distantes.

Já estão prontas para a separação, mas ainda não é hora.

Se acostume com a ideia de deixá-las ir.

Coloque-as em um canto, um lugar que você não use, não mexa muito e pouco veja.

Permita que elas descansem fora do seu convívio e rotina.

Mas, enquanto isso, as observe de vez em quando. Talvez uma olhada antes de dormir. Uma piscada enquanto você relaxa tomando café.

E vá

Se acostumando

Com a ideia

De deixá-las

Ir.

Toda vez que você percebe-las ali ainda presentes, veja como sua vida e você seguiram sem elas.

Sim, você também seguiu.

Tudo continuou enquanto elas repousavam.

E uma vida seguiu sendo construída ao redor delas.

Um dia então, você notará que as conexões se foram.

Que os motivos já não são mais motivos.

Como quem dorme em um dia ensolarado e acorda para uma manhã chuvosa, você despertará sem o desejo de permanecer.

Esta é a forma com a qual você as deixará partir.

Sem tentar substituí-las.

Sem tentar trocá-las.

Acontecerá um dia em que elas simplesmente não te pertencerão mais.

E você tampouco pertencerá a elas.

Neste dia, você dirá adeus.